sexta-feira, 19 de agosto de 2011

No mais divino ela é humana


                Durante as minhas leituras me deparei frente ao poema que segue. Já o havia lido algumas vezes, mas apenas hoje ele tomou conta de mim e, quase que pedindo para ser lido por vocês, veio parar aqui. Geralmente, eu não teço comentários, deixo a leitura livre. Entretanto, quero que observem como o perdão é uma das atitudes mais difíceis da nossa natureza.

Canto eucarístico

Na fila da comunhão percebo à minha frente uma velha,
a mulher que há muitos anos crucificou minha vida,
por causa de quem meu marido se ajoelhou em soluços diante de mim:
‘juro pelo Magnificat que ela me tentou até eu cair,
peço perdão, por alma de meu pai morto,
pelo Santíssimo Sacramento, foi só aquela vez, aquela vez só’.
Coisas atrozes aconteceram.
Até tia Cininha, que morava longe,                  
deu de aparecer na volta do dia.
Conversávamos a portas fechadas,
ela com um ar no rosto que eu ainda não vira,
zangando pouco com o menino, deixando ele reinar.
Houve punhos fechados, observações científicas
sobre a rapidez com que a brilhantina desaparecia do vidro,
sobre como pode um homem, num só dia,
trocar duas camisas limpas.
Irritação, impertinência,
uma juventude amaldiçoada tomando conta de tudo,
uma alegria – que chamei assim à falta de outro nome –
invadindo nossa casa com a sofreguidão das coisas do diabo.
Rezei de modo terrível.
O perdão tinhas espasmos de cobra malferida
e não queria perdoar,
era proparoxítono, um perdão grifado,
que se avisava perdão.
‘Olha, filha, aquela mulher que vai ali
não é digna do nosso cumprimento’.
‘Por que, mãe, não é dí-gui-na?’
‘Quando você crescer, entenderá’.
Senhor eu não sou digno
que neste peito entreis,
mas vós, ó Deus benigno,
as faltas suprireis.
Na fila da comunhão cantamos, ambas.
A mulher velha e eu.

Adélia Prado - O coração disparado (1978)

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