terça-feira, 28 de junho de 2011

Guarde um pouco

Assim que terminei de ler esse poema me peguei pensando sobre como os objetos guardam um pouco de nós.
O guarda-chuva preto

Esquecido na mesa,
com o cabo voltado para cima
e as bordas arrepanhadas,
é como seu dono vestido,
composto no seu caixão.
Não desdobra a dobradiça,
não pousa no braço grave
do que, sendo seu patrão,
foi pra debaixo da terra.
Ele, vai para o porão.
                                                                      Existe um retrato antigo
                                                                       em que pousou aberto,
                                                                             com o senhor moço e sem óculos.
                                                                         Guarda-chuva, guarda-sol,
                                                                         guarda-memória pungente
                                                                       de tudo que foi em nós
                                                                         um pouco ridículo e inocente.
                                                                         Guarda-vida, arquivo preto,
                                                                       cão de luto, cão jazente.
  
                                                                                    Adélia Prado - O coração disparado,  1978

domingo, 26 de junho de 2011

Entre brigas

A primeira vez que li esse poema vibrei com a mulher-força que impera nele. Espero que batam palmas para seus impulsos!

Briga no beco

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.


Adélia Prado - Bagagem (1976)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

                                Parâmetro


                  Deus é mais belo que eu.
                  E não é jovem.
                  Isto sim, é consolo.


                  Adélia Prado - A faca no peito (1988)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Haikais

       No ano de 2010 fui presenteada com uma modalidade de poesia até então nova para mim: o haikai. Minha porta de entrada foi através do livro Luz de Musgo (2008), do escritor paraibano, de Alagoa Grande, Saulo Mendonça (que é meu preferido).
        Para quem não sabe o haikai  é uma modalidade de poesia surgida no oriente advinda do tanka que são “poemas curtos compostos no seguinte esquema: 5-7-5/7-7” (FRANCHETTI, 1990, p. 10). Na sua origem era permitido que "o mesmo tanka fosse composto por duas pessoas: uma encarregada do terceto 5-7-5, também chamado hokku (verso ou estrofe inicial), e outra do dístico 7-7, também chamado wakiku (estrofe lateral)” (FRANCHETTI, 1990, p. 12). É a partir dessa divisão entre estrofes que surge, na forma do hokku, o haikai.
         De fato, eu me apaixonei pela forma do haikai de modo que cheguei a produzir três ou quatro (quem sabe um dia posto aqui). A verdade é que fiz essa pequena introdução para apresentar-lhes alguns haikais da poetisa Eunice Arruda.
       Conheci sua poesia através do livro Há estações (2003). O livrinho (o diminutivo é por ser pequenino e fofinho mesmo) me chamou para ser comprado em um feirão da UFPB. Já no ponto de ônibus comecei a ler e não parei mais.
        Há um jogo de imagens sensoriais muito delicado que vale a pena prestigiar. Deixarei para vocês alguns dos que mais gosto.


(da parte 'Primavera' de Há estações)

Olhar de menino
                sustentando - leve - no ar
a bolha de sabão

(da parte 'Verão' de Há estações)
 
Fiapos nos dentes
    o rosto todo amarelo
É tempo de manga

(da parte 'Outono' de Há estações)
 
 Depois das chuvas
                    a goiaba mostra as sementes
rachadas no chão

(da parte 'Inverno' de Há estações)
 
  Rolando no banco
               só restou uma folha seca 
O trem já partiu


Para saber mais sobre haikai:

 
FRANCHETTI, Paulo et al. Haikai. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicai. São Paulo: Companhia das letras, 2009.




quarta-feira, 22 de junho de 2011

Com Amor

Estreando com Adélia Prado:
 
Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
‘Coitado, até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Bagagem, 1976)

Nosso Vitral

Há pouco mais de um ano venho lendo incessantemente poesia feminina, sobretudo a escrita por mulheres. Pode parecer redundante, mas nem tudo o que denominamos ‘feminino’ tem obrigatoriedade na mulher. Há estudos que provam que o feminino tem origens na natureza da mulher, mas que pode ser absorvido por homens também.

Nas minhas leituras pela internet percebi que as fontes de poesia escrita por mulheres são escassas e, quando existem, tem graves problemas ortográficos e estéticos. Nós que estudamos a arte sabemos que uma simples mudança de vírgula, um recuo de parágrafo ou até uma minúscula no lugar da maiúscula pode mudar o sentido. Então, decidi, paulatinamente, disponibilizar alguns poemas que despertam interesse no leitor. Trarei os mais variados poemas e tentarei buscar algumas informações relevantes sobre as poetisas que temos, sobretudo, no Brasil.

A poetisa chefe desse blog se chama Adélia Prado. Possivelmente a maioria dos poemas postados será de autoria dela. O nome do blog é uma homenagem a um modo peculiar desenvolvido em sua escrita, denominado por Hélder Pinheiro, em sua dissertação “A poesia de Adélia Prado”, defendida na USP em 1992, como poesia de vitral.

No decorrer das postagens também colocarei dados sobre produção, vida, obra, entre outros das autoras que mencionarei. Espero que façam bom proveito das leituras!